segunda-feira, 14 de abril de 2008

1988: Uma Odisséia Constitucional

Costuma-se dizer que, a cada duas décadas na vida de uma pessoa, ocorre um momento de epifania e reflexão sobre como tudo tem sido levado até então. Uma espécie de crise psíquica, regada a tons de depressão e ansiedade. O julgamento do passado até o presente, e das possibilidades do que haverá de ser o futuro, é inevitável. Dúvidas se multiplicam e, por vezes, apavoram. Após esse lapso de questionamento, diz-se que ocorre um salto qualitativo, evolucionista, ou, pelo menos, é o que deveria acontecer. Coincidentemente, é também a cada vinte anos que se inicia uma nova geração.

Todo este simbolismo é curioso, e apenas procura ilustrar e eivar com certa importância uma data que tende a ser especial. Decerto, é chegado um período de transformações visíveis e determinantes. A Constituição de 1988, desde seu nascimento, foi discutida à exaustão, interpretada e reinterpretada, emendada, aplicada e não aplicada. Estudada, dissecada, criticada, elevada aos céus, retalhada. É natural. São os vinte primeiros anos, aqueles em que os conflitos trazem à tona fraquezas das vontades constituintes e onde os alicerces do texto constitucional são testados a ferro e fogo na tempestade social. São anos que parecem tantos, mas na verdade são tão poucos. Intensos, vorazes, mas poucos.

Há efeitos que só sobrevêm com o tempo. E não falamos da concretização de normas programáticas, mas de algo mais sublime: o sentimento constitucional. Porque, no princípio, não há como havê-lo, a médio prazo ele é, se muito, incipiente, mas há um estágio em que sua visibilidade é iminente. E, creio, esta fase está em vias de ocorrer, agora que estamos prestes a atravessar seu limiar profundo e significativo.

Após anos a fio debatendo sobre aspectos ontológicos, deontológicos, principiológicos, axiológicos, normativos e hermenêuticos, já podemos dizer que obtivemos um arcabouço suficientemente sólido para a partir de agora alçar vôo a uma nova espécie de instituto material da Constituição. Se ela, em sua origem, teve sua materialidade refinada no dito espírito constitucional do povo a que se destina, é chegada a hora, pois do feedback, em que a massa nacional irá absorver de volta tudo aquilo que uma vez originou filtrado pelas redes da Carta Magna. É o surgimento de uma dialética constitucional, e com ela o advento do sentimento que se torna essa reabsorção de valores, quando, adentrando no sujeito, liberta-se de seu invólucro normativo para se tornar elemento primordial para a construção de novos paradigmas consuetudinários.

É nesta reintegração ao indivíduo que desponta o significado de sentir a Constituição, este novo verbo que vem ao lado do acostumar-se com uma cultura de Constituição, cuja existência e desenvolvimento se arraiga com o passar das gerações. Se em 1988 o constituinte tinha crescido em um determinado tipo de ambiente humanístico, e em sua obra aplicou o fruto de sua própria construção como ser humano, hoje já é outro, e assim o é as pessoas a quem a Carta Maior se dirige. As novas gerações, ao invés de tornar anacrônico o texto constitucional, pelo contrário, rejuvenescem-no e lhe aprimoram o sentido, posto que nelas já nascem em si mesmas a fonte material da Constituição de maneira natural no decorrer de seu crescimento em sociedade.

Expondo de maneira prática, podemos dizer que a vivência social com as farpas dos litígios judiciários, o acesso mais generalizado do “por que” e do “como” dos direitos que cabem a cada um, a publicização mais ampla das leis e razão de ser delas, dentre outros acontecimentos, estão sempre edificando com experiências boas e más a consciência jurídica do cidadão. Aos poucos vão compondo fragmentos constitucionais na rotina das pessoas, que já incorporam em seu diálogo, mentalidade e relações sociais um pouco da norma superior e provocando uma lenta e progressiva construção de uma cultura jurídica verdadeiramente constitucional. A grosso modo, seria um processo inverso ao da common law anglo-americana, e, sendo assim, o costume nasce a partir da norma fundamental pré-estabelecida que deságua sobre os indivíduos pela convivência entre si e com a própria norma.

Seria imprudente, contudo, afirmar em quanto tempo isto irá ocorrer em dimensões maiores e mais amplas, embora já possamos afirmar com relativa segurança que já acontece e proporciona interessantes observações nesta virada de geração, a primeira depois da Constituição de 1988. Por outro lado, é com maior certeza que podemos decidir que é de grande relevância, e acima de tudo, de extraordinária necessidade, pois a absorção de valores constitucionais é um caminho muito natural e viável para um possível salto cultural sem precedentes e extremamente benéfico para o avanço da sociedade brasileira.


(Texto originalmente redigido como requisito de inscrição para a Simulação de Tribunais Constitucionais do Curso de Direito da UFRN de acordo com o tema "20 Anos da Constituição da República Federativa do Brasil".)

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