segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Discurso, Verdade e Poder: A Sociedade Japonesa na Segunda Guerra Mundial


Teorizar acerca das estruturas que permitem ao discurso o poder que lhe é inerente reforça a idéia de que a essência da verdade em si se encontra amplamente acorrentada à idéia de convenção social e reinvenção do que é verdadeiro a partir de uma transformação social. Diz-se que a história é escrita pelos vencedores, e sendo assim, partindo-se do pressuposto de conflito de classes permanente da civilização humana (segundo os teóricos do socialismo Marx e Engels) e da concepção de que a história propriamente dita nada mais é que uma constatação de fatos, podemos refletir sobre a mudança que pode ser apontada para o caráter de verdade no movimento do fluxo histórico.


O detentor do poder econômico molda o modelo de verdade que deve ser adotado por todos os grupos, levando assim a uma reconstrução de dogmas sociais a cada período revolucionário. O poder da palavra advém do modo como o processo histórico é reescrito no decorrer dos anos, fornecendo às gerações futuras conhecimento, de modo algum holístico, mas bastante parcial com relação à determinada época, provocando a quebra de uma verdade que seria mais pura e originando um estilhaço da verdade refletindo a parcialidade do discurso.

Os grandes conflitos da humanidade são povoados de discursos unilaterais que regem os sistemas de cada parte envolvida, um universo multipolar de verdades absolutas corroídas pelo desejo de poder e dominação. O principal objetivo desse totalitarismo verbal nada mais é que um foco na ação dos indivíduos que compõem a nação de forma a direcioná-los de acordo com os objetivos desejados por aqueles que detêm o poder do discurso, e, por conseguinte, o poder de criar uma verdade, mesmo que numa visão mais ampla da situação ela se mostre falsa. Discernimento para diferenciar tais opostos é, de fato, um caminho deveras complexo, permeado de dúvidas e desilusões.

Dentro do contexto da Segunda Guerra Mundial, um dos mais catastróficos exemplos bélicos da história do homem, surgem dois pólos dualistas de confronto: o nazi-fascista, encabeçado pelo eixo Itália, Alemanha e Japão; e o democrático, liderado pelos Estados Unidos, França e Grã-Bretanha. A sociedade japonesa, nosso atual objeto de estudo, situar-se-á nesse período conturbado de trevas, onde a iminência de armas de destruição em massa e uma nova onda ideológica assombravam as nações.

No final do século XIX o Japão vivia os últimos resquícios do feudalismo e da política de isolamento imposta pelos Tokugawa, quando da derrocada do Xogunato e ascensão dos Monarquistas (estes defensores do Imperador e de uma abertura do país ao Ocidente). Com o Imperador Matsuhito instaurando a Era Meiji, logo após a derrota dos xoguns e dos daimiôs, iniciou-se uma nova era para a nação nipônica, visto que a influência ocidental foi de grande importância para tais transformações.

Em tese, o povo japonês, diante da modernidade em vários aspectos do Ocidente, desejava alcançá-lo a fim de configurar-se no mais alto patamar da hierarquia mundial. Em outras palavras, o senso hierárquico de tal povo era forte o bastante para dar a cada elemento o seu devido lugar, respeitando a ordem do superior por sua demasiada responsabilidade e exercendo o papel de tutor ao seu inferior; buscava, baseado em seus ideais nacionalistas, ser líder dentre as grandes nações. Apenas através de uma política de conquistas pretendiam alavancar o Japão como uma potência a partir de atos bélicos como a invasão da Coréia, de Taiwan, e da região da Manchúria nas primeiras décadas do século XX.

Sob essa perspectiva, podemos considerar, então, que o perfil do governo japonês assemelhava-se nos quesitos de alto nacionalismo e desenvolvimento armamentista aos dos contemporâneos governos fascistas (como Hitler, na Alemanha, Mussolini, na Itália, e Franco, na Espanha), embora em seus objetivos se diferenciarem destes profundamente. Envoltos pelo discurso de grandeza, partiram para um lugar, seu “devido lugar”, na esfera global, mesmo que isto inferisse no conflito armado com outros povos (como os coreanos e chineses). É em tal ambiente psicológico que se encontra a sociedade japonesa pouco tempo antes da eclosão da Grande Guerra.

Dadas as informações supracitadas, partamos agora para uma análise mais detalhada das funções do poder e da força verbal. Mesmo durante as guerras civis envolvendo os exércitos leais ao xogun e os monarquistas, havia uma grande confusão acerca dos objetivos e das motivações de cada lado. Inverdades e falsas informações eram disseminadas em cada extremidade como verdades íntegras de valor e sentido, fornecendo margem ao ódio e à fúria. Ora, que melhor combustível poderia inflamar ainda mais o sangue de um homem que aquele da palavra envenenada? A manipulação do poder, e do que constituía de fato o poder em si, era uma questão chave para o sucesso de qualquer dos lados. O manejo de um discurso correto significava um grande passo rumo à vitória.

A partir do momento em que o Imperador passou a ser um simples fantoche nas mãos de um líder militar (o xogun), o jogo de palavras acentuou-se ainda mais, descaracterizando a figura sacra do descendente direto da grande deusa Amaterasu como apenas um enfeite belo e santo no topo de todo o Japão. A verdade dos deuses, repassada ao Imperador, e concedida ao xogun por meios misteriosos, pois, na meta de preservar a figura do líder religioso, o líder militar assumia a responsabilidade para com os assuntos considerados “mundanos”, agarrando para si o poder de governar uma nação em nome do Imperador. Controle do poder, exercício de soberania, pois, apenas com o domínio das palavras sagradas e do discurso valorativo pôde se alcançar o nível de concentração de posses que caracterizou o Xogunato. Com o advento de Commodoro Perry, da marinha americana, e sua ameaça aos portos de Kyoto tempos depois, forçando a abertura destes, iniciou-se o processo que culminou com as diversas batalhas que levariam ao fim do feudalismo e início da Era Meiji.

Chegando, enfim, ao período ativo do Japão durante a Segunda Guerra Mundial, percebemos um fato extraordinário que não há de se deixar passar em branco. Muito se aclama acerca dos kamikaze que devotavam sua vida ao bem do seu país. Contudo, ressaltemos que o senso de consciência de coletividade dos japoneses é um caso raro na história, pois reflete uma enorme homogeneização, resultando na maior facilidade de canalização de ideologias e vontades. Junte-se a isso a noção rígida de hierarquia, e presenciamos um exército de praticamente autômatos prontos a realizarem sua missão, sem ao menos duvidar do por que disso ou daquilo e fornecendo uma via mais poderosa para a efetividade de uma ordem superior. A verdade de poucos, mesmo que inapta e decadente, acaba por decidir o destino de muitos sem que estes sequer questionassem tal verdade, procurando varrer da mente aquilo que nos faz tão humanos, que é a própria dúvida. A palavra do superior, absoluta acima de tudo, embora partindo de um ser imperfeito e submetido a erros de formulação e a emotividade humana. Afinal, que verdade haveria de ser posta aos olhos daqueles que lutam senão a verdade de seu próprio lado? E se fosse mostrada mais de uma, o que iria curar o princípio da incerteza, fatal numa guerra? Será que, para tais pessoas, não existiria uma única verdade, pura e simples? Que verdade não haveria de parecer absurda senão aquela que lhes foi imposta?

A concepção de verdade revela apenas a fragilidade dos conceitos humanos ante o mundo que o circunda e as relações que desempenha entre si próprio e o indivíduo com quem interage. Mentiras e falsidades podem ser verdades, e o inverso também recíproco. Qual a referência para isso? Com que certeza podemos distinguir verdades e mentiras? E, mais do que isso, por que às vezes damos nosso sangue em prol daquilo em que acreditamos piamente, mesmo sem pensar se talvez isto não seja tão certo? E de certa forma, quem somos nós para criticar a posição tomada por outrem ante sua própria concepção do verdadeiro?

A dúvida nos ensina a caminhar com o nosso pensamento. Duvidar de tudo nos torna céticos, duvidar de nada nos torna ingênuos. Duvidar apenas, eis algo que pode ser pensado com coerência. Contudo, apenas este ato, e toda a convicção de um soldado que está frente a frente com o inimigo poderá se esvair em um segundo, assim como o término de sua própria existência. Daí a grande importância de um discurso único, forte, de verdade imbatível, simples e, portanto, insofismável. A diferença entre viver e morrer apenas embasada em uma crença talvez até infantil, mas se inabalável, capaz de levar uma nação inteira à vitória.

Diante dessa capacidade intrínseca ao valor do discurso, a linguagem nos torna subservientes a ela e engloba também o que nos torna aptos a ver o mundo. Foi apenas através da escrita que pudemos transmitir pelos séculos nosso conhecimento e vivência enquanto seres humanos sem nos desvirtuar tanto o quanto nos proporcionaria uma transmissão verbal.

Quando, na frente de batalha, ocorria uma derrota, os meios de comunicação prontamente assumiam que as autoridades responsáveis já haviam calculado e previsto que tal fato viria a acontecer, explicitando também que providências cabíveis já estariam sendo tomadas (mesmo quando, na maioria das vezes, tal coisa tenha sido totalmente inesperada). Até mesmo na mais crucial das derrotas, isto ocorria, e os que recebiam tal informação acreditavam (a fonte da informação, se do governo, conferia um status de superioridade, e, portanto, alta hierarquia). Isso, de fato, auferia segurança, bem inestimável em tempos de guerra. O que teria acontecido se toda a verdade fosse revelada? O valor da verdade pura nem sempre é benéfica, quando daí tiramos a conclusão de que até mesmo as mentiras são necessárias, tanto quanto a própria verdade. Portanto, que haveria de discurso sem a não verdade? Sem um oposto para fornecer-lhe um antagonismo, será que existiria verdade de fato, ou apenas o que é em si, sem julgamentos axiológicos em torno dele?

Retornando ao motivo citado inicialmente, o medo, este o pior dos inimigos, de perder o controle, de estar diante de algo, acima de tudo, desconhecido, não seria a maior derrota de todas? Quão sábia foi a atitude da mídia oficial ao relatar-lhes isso de tal modo? O poder da palavra vem principalmente do grande sentido destas: palavras são conceitos, e conceitos são visões limitadas de uma realidade abstraída. Se no discurso as palavras são as chaves para a transformação da realidade, são, também, as portas para a delimitação de um sentido real e, na lógica humana, verdadeiro. Em suma: palavras são verdades dispostas, deliberadamente ou não, em um sistema denominado linguagem.

Com a derrocada do Eixo, ao Japão foi forçada a rendição, e o ataque de duas bombas atômicas de terrível efeito ao arquipélago. O Imperador perdeu seu status de divindade na Terra e passou a agir de acordo com uma constituição pré-ordenada pelos Estados Unidos da América. Foi também coagida à devolução das terras tomadas antes à Guerra, e severamente limitado seu contingente militar. A partir de então, uma nova identidade se aplicava à nação japonesa, quando os EUA ofereceram-lhe o Plano Colombo de ajuda financeira. Seu caráter capitalista começaria a ser desenvolvido.

A história, de fato, é escrita pelos vencedores. O discurso ocidental americano saiu vitorioso, e suas verdades foram aceitas. Suas concepções e seu estilo de vida, assimilados. Sua glória legitimou suas ideologias e conceitos, manifestando-se através de sua cultura e sociedade. O poder estava, agora, em suas mãos, a genuína força motora de um novo mundo. O que haveria de mudar se as coisas não tivessem corrido dessa forma? E se o outro lado tivesse vencido? É certeza que os perdedores sofreriam o mesmo processo esmagador que ofereceria a imposição de uma ordem similar. Verdades por outras verdades, mentiras por outras mentiras, discursos por outros discursos, tudo haveria de mudar, embora não em essência conceitual. Contudo, o único elemento que jamais sofreria um único espasmo em seu âmago seria o sentido de poder. O poder que sobrepuja e cunha o que deve ou não ser verídico, e naturalmente, o que deve ou não ser falado: o discurso do poder em si.

BIBLIOGRAFIA

BENEDICT, Ruth. A Espada e o Crisântemo. Ed. Perspectiva, Coleção Debates, 1986.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 11ª Ed. Editora Ática, 2000.
FOULCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Ed. Gallimard, Paris, 1970.
NIETSZCHE, Friedrich. Sobre a verdade e mentira no sentido extra-moral. 2ª Edição. In: Coleção Os Pensadores, 1978.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

O Monstro Eleitoral

A democracia tem coisas certamente tão complexas quanto incompletas...parece coerente dar abertura à candidatura de todo e qualquer tipo de [supostos] representantes das comunidades locais. Mas não é.

Obviamente, não há de se falar aqui em impor restrições grotescas ou limitações do gênero, mas acredito que seja um dever dos partidos políticos selecionarem com um critério mais rigoroso os candidatos a vereadores que defenderão as cores da organização. De outro modo, como é o caso, o que algumas vezes, a princípio, tem o objetivo de parecer propositadamente jocoso e, pasme, contestador, acaba por sujar a imagem do cenário político como um todo com figuras de diversão e chacota.

Não tenho lá muita experiência política, mas creio que este definitivamente não é o caminho certo para se solidificar a desejada seriedade política. Ou será que é, e eu não sei? O caso é que, com essa vasta "seleção" de candidatos despreparados até para divulgar suas possíveis propostas , quando raramente as tem, no mínimo podemos dizer que é bastante duvidoso o papel que desempenharão, caso consigam ser eleitos.

No mais, em 90% do tempo do horário eleitoral na TV, ou rimos, ou choramos. E como ninguém aqui costuma derramar lágrimas pela política local, contentemo-nos com o show de humor que só os nossos candidatos podem oferecer.