quarta-feira, 17 de novembro de 2010

King Está Certo

Quem depende da imaginação traz tradicionalmente em sua atividade um quê de artimanhas e técnicas para aperfeiçoar seu trabalho e sua cabeça. Principalmente no que se refere à mais manhosa das emoções, mais ciumenta e mais temperamental: a inspiração.

É muito fácil virar escravo dessa alma bandida, depender dela em todo e qualquer instante para que nossa imaginação consiga fluir impávida pelos veios de nossa criatividade. De fato, quando ela vem, tudo fica muito mais simples.

Talvez nós é que devêssemos ser cada vez mais independentes da inspiração, essa danada volúvel. Declarar independência dessa entidade instável que nos deixa miseráveis e degrada nossa dignidade, ao ponto em que fazemos de tudo para mendigar uma migalha de sua atenção mais medíocre.

O mestre Stephen King sugere que a repetição é o inferno, mas que também leva a um sensível amadurecimento de quem precisa transmitir sua imaginação e concretizá-la no mundo real sob a forma que deseja. E, de fato, cada dia que passa esse conselho faz cada vez mais sentido.

Principalmente porque eu não o sigo.

Não importa quantas apoteoses imaginativas você tenha se não conseguir transportá-las para esta realidade de maneira que lhe satisfaça. Com o tempo, fica tudo aglomerado, acumulado dentro de sua mente. É como se tivesse guardado comida na geladeira por tempo demais. Quando você precisa, muita coisa vai estar embolorada, fora da validade e com o gosto ruim. Daí o que tinha de bom na maioria das vezes vai se perder irremediavelmente. E assim expiram as boas ideias, nunca aproveitadas.

Além disso, pode ser uma das chaves para a prisão criativa em que às vezes a inspiração nos enjaula despudoradamente. Para pessoas perfeccionistas, certamente será um problema, já que se teimam a concluir algo que não esteja em um nível absurdo de qualidade. Mas, conformem-se. Ou sofram nas mãos dessa ingrata libertina.

A repetição nada mais é que a prática constante, estável e paulatina. O acesso às rotas misteriosas e diáfanas que levam as coisas da imaginação para a realidade, com esforço, podem ser mais fluídas e mais cotidianas, dispensando circunstâncias ritualísticas e momentos sublimes para que se abram e despejem seu conteúdo maravilhoso a contento.

Confesso que um dos meus maiores medos é o risco de banalização pela repetição, quando belas paisagens se transformam em meros panos de fundo insossos quando nossa rotina as domina e as despe de suas cores que as fizeram belas. Mas ainda sim, é tão melhor fazê-las parte de nosso dia-a-dia que as deixar ocultas e inabitáveis, até que virem terras estéreis, a própria sombra daquilo que poderiam ter sido e não foram.

No final das contas, King estava mesmo certo.