terça-feira, 22 de abril de 2008

O Monstro Jurídico

Tristeza maior é ver o homem dominado pela sua própria regra, feita para controlar a bestialidade inerente a cada indivíduo, mas agora transpassando as barreiras de sua função original e acorrentando também a parte melhor que há, e a impede de florescer.

Quando foi que nos esquecemos que acima de tudo isso há os nobres sentimentos que ainda existem enquanto os humanos permanecerem como seres vivos?

Se há regras para ater os vícios da humanidade, por que deixamos que elas se estendam também às virtudes? Quando foi que deixamos findar sonhos dos mais variados em nome de uma estabilidade cinzenta? Quanto de cada parte de nós sacrificamos em nome de uma independência ilusória?

Por favor, não permita que a lei atrofie seu senso de justiça, nem que o maquinário burocrático emperre a sua moral, ou que especialistas levem-no a abandonar sua ética pessoal, ou "aquilo que você faz quando quer que as pessoas ao seu redor se sintam mais e melhor".

Não deixe a ficção jurídica obscurecer o valor do que verdadeiramente tem valor; "tudo pela segurança jurídica" é algo totalmente inválido se não há em mente a verdadeira importância daquilo que realmente devemos proteger, ou então será tarde demais.

Que tipo de prisão foi essa em que nos metemos? Que redemoinho sem volta foi esse que nos força a esquecer de nossa própria humanidade e mutilá-la em tantos pedaços a fim de alcançar objetivos discutíveis? Que fascínio é esse que exerce a regra sobre nós, desviando-nos do objeto focado pela sua finalidade?

Ora, pois, se até o amor é inconstitucional, que podemos mais fazer, a não ser sermos engolidos pela própria máquina que inventamos? Por que as pessoas perdem de vista algo tão importante?

Sim, isto é um clichê. E assim o será, até que deixe de sê-lo...a utopia é sempre utópica, mas sua mera tentativa terá sempre o rótulo de realização.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

1988: Uma Odisséia Constitucional

Costuma-se dizer que, a cada duas décadas na vida de uma pessoa, ocorre um momento de epifania e reflexão sobre como tudo tem sido levado até então. Uma espécie de crise psíquica, regada a tons de depressão e ansiedade. O julgamento do passado até o presente, e das possibilidades do que haverá de ser o futuro, é inevitável. Dúvidas se multiplicam e, por vezes, apavoram. Após esse lapso de questionamento, diz-se que ocorre um salto qualitativo, evolucionista, ou, pelo menos, é o que deveria acontecer. Coincidentemente, é também a cada vinte anos que se inicia uma nova geração.

Todo este simbolismo é curioso, e apenas procura ilustrar e eivar com certa importância uma data que tende a ser especial. Decerto, é chegado um período de transformações visíveis e determinantes. A Constituição de 1988, desde seu nascimento, foi discutida à exaustão, interpretada e reinterpretada, emendada, aplicada e não aplicada. Estudada, dissecada, criticada, elevada aos céus, retalhada. É natural. São os vinte primeiros anos, aqueles em que os conflitos trazem à tona fraquezas das vontades constituintes e onde os alicerces do texto constitucional são testados a ferro e fogo na tempestade social. São anos que parecem tantos, mas na verdade são tão poucos. Intensos, vorazes, mas poucos.

Há efeitos que só sobrevêm com o tempo. E não falamos da concretização de normas programáticas, mas de algo mais sublime: o sentimento constitucional. Porque, no princípio, não há como havê-lo, a médio prazo ele é, se muito, incipiente, mas há um estágio em que sua visibilidade é iminente. E, creio, esta fase está em vias de ocorrer, agora que estamos prestes a atravessar seu limiar profundo e significativo.

Após anos a fio debatendo sobre aspectos ontológicos, deontológicos, principiológicos, axiológicos, normativos e hermenêuticos, já podemos dizer que obtivemos um arcabouço suficientemente sólido para a partir de agora alçar vôo a uma nova espécie de instituto material da Constituição. Se ela, em sua origem, teve sua materialidade refinada no dito espírito constitucional do povo a que se destina, é chegada a hora, pois do feedback, em que a massa nacional irá absorver de volta tudo aquilo que uma vez originou filtrado pelas redes da Carta Magna. É o surgimento de uma dialética constitucional, e com ela o advento do sentimento que se torna essa reabsorção de valores, quando, adentrando no sujeito, liberta-se de seu invólucro normativo para se tornar elemento primordial para a construção de novos paradigmas consuetudinários.

É nesta reintegração ao indivíduo que desponta o significado de sentir a Constituição, este novo verbo que vem ao lado do acostumar-se com uma cultura de Constituição, cuja existência e desenvolvimento se arraiga com o passar das gerações. Se em 1988 o constituinte tinha crescido em um determinado tipo de ambiente humanístico, e em sua obra aplicou o fruto de sua própria construção como ser humano, hoje já é outro, e assim o é as pessoas a quem a Carta Maior se dirige. As novas gerações, ao invés de tornar anacrônico o texto constitucional, pelo contrário, rejuvenescem-no e lhe aprimoram o sentido, posto que nelas já nascem em si mesmas a fonte material da Constituição de maneira natural no decorrer de seu crescimento em sociedade.

Expondo de maneira prática, podemos dizer que a vivência social com as farpas dos litígios judiciários, o acesso mais generalizado do “por que” e do “como” dos direitos que cabem a cada um, a publicização mais ampla das leis e razão de ser delas, dentre outros acontecimentos, estão sempre edificando com experiências boas e más a consciência jurídica do cidadão. Aos poucos vão compondo fragmentos constitucionais na rotina das pessoas, que já incorporam em seu diálogo, mentalidade e relações sociais um pouco da norma superior e provocando uma lenta e progressiva construção de uma cultura jurídica verdadeiramente constitucional. A grosso modo, seria um processo inverso ao da common law anglo-americana, e, sendo assim, o costume nasce a partir da norma fundamental pré-estabelecida que deságua sobre os indivíduos pela convivência entre si e com a própria norma.

Seria imprudente, contudo, afirmar em quanto tempo isto irá ocorrer em dimensões maiores e mais amplas, embora já possamos afirmar com relativa segurança que já acontece e proporciona interessantes observações nesta virada de geração, a primeira depois da Constituição de 1988. Por outro lado, é com maior certeza que podemos decidir que é de grande relevância, e acima de tudo, de extraordinária necessidade, pois a absorção de valores constitucionais é um caminho muito natural e viável para um possível salto cultural sem precedentes e extremamente benéfico para o avanço da sociedade brasileira.


(Texto originalmente redigido como requisito de inscrição para a Simulação de Tribunais Constitucionais do Curso de Direito da UFRN de acordo com o tema "20 Anos da Constituição da República Federativa do Brasil".)